Troca de Cultos em tempos pandémicos
❝ Mude as suas opiniões, mantenha os seus princípios. Troque as suas folhas, mantenha as suas raízes ❞ Vitor Hugo
Vivo na Califórnia perdida de abundância, como escreveu o poeta da ilha das Flores, nos Açores, Pedro da Silveira, desde os 10 anos de idade. Aqui aprendi a ser português à distância. Aqui tenho vivido a portugalidade e a açorianidade na geografia de um verdadeiramente colossal estado da união (ou desunião) americana. E aqui aprendi a viver o confinamento que a pandemia global exige de todos nós. Aqui numa comunidade de origem portuguesa, quase toda com raízes nos Açores, rodeada, como já foi escrito algures, de América por todos os lados, vivi e vivo, a dualidade de duas Américas, cada vez mais polarizadas, que infelizmente infestam o espírito unificador das gentes oriundas ou com raízes nas ilhas de bruma. A pandemia afetou-nos a todos. Os divisionismos de um país liderado pela brutalidade de um narcisista com tendências ditatoriais, trouxeram à flor da pele os mais nocivos comportamentos humanos, e infiltraram o cerne das gentes portuguesas em terras do Eldorado americano. A pandemia, motivada pela peste que é a alienação da ciência e a abdicação da empatia, propagadas pelo inquilino da Casa Branca, modificaram-nos a América, incluindo a minha comunidade.
Ao longo do confinamento que vivo desde março de 2020, ligado a partir de então a tudo o que é tecnologia e sessões virtuais, passando pelas sempre surpreendentes redes sociais, tenho absorvido as realidades que esta pandemia nos mostra, quotidianamente, sobre o mundo da nossa diáspora portuguesa e açoriana numa das maiores e mais produtivas regiões dos Estados Unidos. Na era da pandemia global, aprendi, como todo o mundo o tem feito (uns mais do que outros, entenda-se), a viver com o distancia- mento social, a usar máscara em público, a reduzir o contacto com outros seres humanos, particularmente os contactos habituais com familiares e amigos e a ver e interiorizar como um déspota no centro do poder destrói os laços que nos unem como comunidade, como parceiros num mundo multi- cultural, onde a nossa identidade colectiva, que trouxemos de pequenas ilhas no meio do atlântico, é a nossa maior riqueza e vai muito além da política partidária e efémera. Tem raízes profundas de séculos de vivência e criatividade insulares e jamais deveriam ser extintas, ou adulteradas, pelos danosos arrotos de um magnata do novo- riquismo americano aliado a acólitos que professam os piores sentimentos da humanidade, desde o racismo à xenofobia, do insulto gratuito à crueldade.
A pandemia global tem trazido à flor da pele, do meu pequeno mundo açor-californiano, onde vivem muitos compatriotas, uma nova era, que infelizmente não é baseada no progresso humano que todos aspiramos. Aqui, num dos vales mais férteis do mundo, o vale de São Joaquim, que John Steinbeck, entre outros escritores americanos, imortalizou com as Vinhas da Ira, para onde emigraram sucessivas gerações de portugueses, vindos quase todos do arquipélago dos Açores, vive-se um tempo e um novo conceito que é a antítese da açorianidade que Vitorino Nemésio e outros nos legaram. Quem saiu, por necessidade de barriga (e seus descendentes) daqueles pedaços de vulcões no meio do atlântico, têm demonstrado nestes tempos sem precedentes, que já se esqueceram de que também fomos (e somos) emigrantes; que também fomos (e somos) clandestinos; que também fomos (e somos) refugiados.
A “pressa de se ser americano” sobre a qual me tenho debruçado variadíssimas vezes, aliada a um novo espírito nativista que infelizmente interiorizámos cedo demais, trouxe-nos, ao longo dos meses de quarentena, neste meu mundo composto por duas línguas e várias culturas, uma nova realidade, que na verdade já o era pré-pandemia, infelizmente já dava um ar que se despontava, sem graça nenhuma. Aliás, a poeta afro-americana Maya Angelou já o dizia: quando alguém se mostra como é, acredita. Os tempos desta primeira peste do século XXI, atiraram-me à cara aquilo que andava a fugir e rejeitava interiorizar: a minha gente já não é a mesma gente que saiu dos Açores. Esta rapidez para ser-se americano, para se despir os conceitos que aprendemos no berço e ainda celebramos neste canto do mundo através das festas ao Espírito Santo, festejos atlânticos baseados na solidariedade, na empatia, no pluralismo e no compromisso que temos para com os menos favorecidos, está a transformar a minha comunidade, e pelo que incrível que pareça, essa transmutação propaga- se com muita facilidade entre os mais novos. Isso assusta-me e entristece-me.
A amplificação do trumpismo, com o ódio, a degenerescência, a polarização e a crispação que o mesmo tem espalhado, em tempo de pandemia, provocando o alastramento do coronavírus e ceifando a vida a centenas de milhares de pessoas, propagou-se no meu mundo de americanos, emigrantes ou com raízes nos Açores. As redes sociais servem para testemunhar- mos essa mudança. Infelizmente, o meu mundo também foi infestado com o outro perigosíssimo vírus, que se proliferou em tempo de isolamento e é alicerçado na falta de informação, na apologia da ignorância, no desrespeito pela liberdade, no nacionalismo exagerado, no desprezo pela verdade, na demonização por que quem pensa ou vive com patamares dissimilares.
Ao longo desta pandemia, desassossega-me o comportamento de milhares de americanos com quem vivo e trabalho. Inquieta-me a divisão e a adstringência que se vive na sociedade americana. Atemoriza- me o distanciamento que se cria entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Apavora-me a divisão de classes e etnias que separa o mundo estadunidense. Entristece-me, profundamente, que na minha comunidade, haja um número tão significativo de homens e mulheres, com raízes na açorianidade e na portugalidade que tenham trocado o culto do Espírito Santo pelo culto do Trump.