CRÓNICA | Paralelo 39 N
O dia em que as pessoas se esqueceram
Por JOSÉ CARLOS ADÃO
Era um domingo de manhã. O dia tinha começado às 7 da manhã. Nesse dia, perdido num solarengo mês de maio, um e outro tinham-se levantado perto das 5 da madrugada.
Abriram a porta e puseram uma caixa preta no meio da mesa. Ao lado, dois livros grandes onde estavam nomes e nomes. Os livros tinham listas e essas listas eram nomes de pessoas. Homens, mulheres, todos adultos. Pessoas que iam aparecer. Pessoas que tinham de aparecer nesse dia.
Era um domingo de manhã como tantos e um e o outro estavam a aguardar a chegada das pessoas. Essas pessoas que deviam aparecer. Essas mesmas pessoas que iam decidir. Tinham na sua mão o poder de decidir.
Como um e o outro, em tantos lugares da Europa tão diferentes, havia uns e outros que também abriram as portas e puseram as caixas pretas no meio da mesa. Aguardavam. Esperavam a partir das 8 que as pessoas que iam decidir chegassem. Olhavam-se e falavam sobre coisas banais. Falavam em diferentes línguas, tinham cores e área diferentes mas todas aguardavam pessoas que iam decidir e todas tinham uma caixa e livros com folhas e com listas. Um e outro aguardavam e ouviam o silêncio.
Do outro lado da porta, não havia ruído, do lado de dentro, o silêncio começava a instalar-se. Um e o outro tinham já decidido, tinham já colocado o poder, a sua decisão na caixa preta que, esperavam, fosse crucial para o bem comum por essa Europa fora. Pensavam no que teriam feito os uns e os outros como eles, que aguardavam as pessoas que viriam, as pessoas que iam chegar e decidir.
As horas começaram a passar no domingo, no dia solarengo em que chegariam outros como aqueles que esperavam. No entanto, os outros não chegaram. Ninguém apareceu. A caixa permanecia na mesa, as listas também e as pessoas não se viram. Ninguém veio decidir. Ninguém se lembrou. Desde lá de cima, do frio até ao calor dos que perto do Mediterrâneo ou do Atlântico viviam, ninguém apareceu.
O dia passou e a caixa continuava vazia. Um olhava o outro em silêncio, numa angústia que já se notava e conheciam bem as consequências. As pessoas esqueceram-se, as pessoas ignoraram o peso da sua decisão e deixaram a ninguém esse compromisso. A caixa, nesse momento transformou-se em caixão. Passou a ser o depósito vazio da esperança na União. O caixão não tinha poder suficiente e a União desmembrou-se nesse dia. No dia em que as pessoas se esqueceram, as caixas passaram a chamar-se urnas e ninguém mais votou…As únicas duas pessoas que se lembraram, morreram anos e depois e, junto de si, levaram a última memória do papel que era a sua decisão.
Ninguém mais votou. Ninguém mais teve poder de decisão, ninguém mais teve liberdade porque, para haver liberdade tem de haver memória.