EXCLUSIVO | A 1.ª MULHER DE SANGUE LUSÓFONO A CHEGAR A VICE-“MAYOR” NA MAIOR CIDADE DO ESTADO DE NEW JERSEY

Por HENRIQUE MANO | News Editor

A agenda da vice-Presidente da câmara de Newark para a Diáspora e Assuntos Internacionais, Lígia de Freitas, reflecte o carácter multicultural da maior urbe do estado de New Jersey; se não está no içar da bandeira de uma nação africana, das Caraíbas ou da América do Sul, o seu telemóvel pode tocar e, do outro lado da linha, surgir a voz de um qualquer cônsul ou embaixador. Não raras vezes, também é vista a inaugurar um novo serviço municipal ou na entrega de uma placa ou diploma em nome do “mayor” Ras J. Baraka a uma associação ou figura portuguesas.

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | A vice-“mayor” Lígia de Freitas. no edifício da Câmara Municipal de Newark, onde quebrou barreiras ao tornar-se na 1.ª mulher de origem lusófona a ocupar o cargo

“Newark é uma cidade repleta de diversidade, rica em cultura e em ensinamentos, com a mais-valia de que todas as nações aqui representadas, se entrelaçam com muita coisa em comum e em prol de um todo”, afirma Lígia de Freitas, na entrevista exclusiva que concedeu ao jornal LUSO-AMERICANO, no seu gabinete no 2.º andar do edifício da Câmara Municipal. 

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | Lígia de Freitas é vice-“mayor”para a Diáspora e parea o pelouro das Relações Internacionais

Na verdade, a vice-“mayor” simboliza várias bandeiras e a complexidade da experiência da emigração. A da Guiné-Bissau, onde nasceu, e a de Goa, onde tem raízes paternas; a de Cabo Verde, onde cresceu e se fez mulher; a da lusofonia, pelos afectos com as comunidades portuguesa e brasileira; a de Newark, onde é um dos braços direitos do “mayor” Ras J. Baraka… Aquela que, por ventura, levanta mais alto, é a de cidadã do mundo – por navegar com extraordinário à-vontade pelas muitas “cidadanias” que o destino lhe foi agregando com passaporte da vida.

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | A discursar na cerimónia do içar da bandeira de Portugal na “City Hall”, em 2022

Tinha pouco mais de um ano quando os pais a levaram da cidade de Bissau, onde nasceu, para a ilha de Santiago, em Cabo Verde. É na Cidade da Praia que faz os estudos do ensino básico, seguindo depois, como bolseira, para o Brasil. Outra bolsa de estudos (esta da Fundação Gulbenkian) fá-la atravessar mares, de novo, para estudar Relações Internacionais em Portugal. No regresso a África, ingressa na Organização das Mulheres Cabo-Verdianas e, mais tarde, no Centro Cultural Francês, na área da cooperação e intercâmbio internacionais.

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | Com o “mayor” Ras J. Baraka (2.º da esquerda) na apresentação de cumprimentos dos cônsul-geral Luís Sequeira (2.º da direita), vendo-se ainda o vereador Michael Silva, do Bairro Leste, e José Carlos Adão (coordenador adjunto para o ensino do português)

O carácter de globalidade também lhe está no ADN. O avô materno, Barbosa da Silva, era lisboeta “e faleceu mesmo em Algés, para onde foi viver depois da independência de Cabo Verde. Por mais incrível que pareça”, conta,  “éramos das poucas famílias em Cabo Verde onde era obrigatório falar um pouco de português em casa. Tínhamos até, eu e o meu irmão, um estímulo – se falássemos o mês todo português em casa, tínhamos uma mesada extra… Tenho quase a certeza de que isso fez com que solidificasse o meu português, já para não falar que tive de ler Eça de Queirós e Camões durante as férias, por insistência da minha mãe e do meu avô. Para ter cultura geral, uma visão ampla do mundo.”

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | Lígia de Freitas subindo as escadarias de acesso à “City Hall”: é um dos elementos do núcleo duro do “mayor” Ras J. Baraka

O apelido herda do pai, Freitas Mascarenhas, de sangue goês. “Cheguei a ter a tentação a certa altura de pedir a nacionalidade portuguesa…”, revela.

Com carta de chamada da sogra, que já vivia na América, Lígia de Freitas, o então marido e os filhos chegam a New Jersey há quatro décadas. Em Newark, “onde sempre vivi”, trabalha numa loja de roupa e, a estudar à noite, faz-se contabilista. Ainda arranja emprego na Teixeira’s Bakery antes de abrir o seu próprio escritório de contabilidade – “The Best Service, Inc.” – que os dois filhos (que lhe seguiram os passos) mantêm no Ironbound.

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | No NJPAC com duas crianças luso-americanas no Discurso da Cidade, em 2022, do “mayor” Baraka

A presença de Lígia de Freitas na vida lusófona no Bairro Leste chama a atenção do irmão de Ras J. Baraka, Amiri, à altura um poeta e activista com ambições políticas. Convidada a integrar a sua equipa de campanha, nas eleições de 2013 torna-se na sua voz no Ironbound. Eleito, Baraka oferece-lhe o cargo de assessora para o Bairro Leste. “O meu negócio ia bem, ganhava mais, mas achei que era uma oportunidade de aproximar o Bairro Leste da Câmara e do ‘mayor’, podendo assim fazer a diferença”, explica. “Aceitei por um ano, fiquei lá quase 6…”.

Apesar de ter nascido na Guiné-Bissau, cresceu na ilha cabo-verdiana de Santiago – na Cidade da Praia – e assume-se como tal

Em 2019, Baraka apresenta-lhe novo desafio: passar a vice-“mayor” para o pelouro da Diáspora e Relações Internacionais. “Tratando-se de uma área que sempre mexeu comigo, não pude recusar. Nestes quatro anos, temos trabalhado para que as comunidades da diáspora, seja qual for o seu status, tenha dignidade e se sinta parte integral de Newark.”

Ao aceitar o cargo, Lígia de Freitas garantiu um lugar na história da “Brick City”: a 1.ª mulher de origem lusófona a chegar a “vice-mayor”!

Sem aspirações eleitorais, Lígia de Freitas diz estar no lugar certo: “Certas coisas não são para todo o mundo, eu gosto de estar atrás das cortinas, a fazer as coisas acontecerem. Gosto de trabalhar na área social, ajudar os mais necessitados e ver Newark evoluir de forma positiva.”

Foto: JORNAL LUSO-AMERICANO | Lígia de Freitas começou o seu trabalho na Câmara como assessora do “mayor” Ras J. Baraka para o Bairro Leste

Reconhece que a política ainda é um universo muito dominado pelos homens. “Nos EUA, apesar de todos os avanços, ainda há mulheres a fazer o mesmo que os homens mas a ganhar menos. Graças a Deus vamos vendo várias conquistas, aqui temos a senadora estadual Teresa Ruiz, por exemplo, mas não tanto como gostaria de ver. Queremos mulheres governadoras (sim, já temos uma vice-presidente…) e em todas as áreas de chefia. Há muito trabalho ainda a fazer na paridade de géneros, nos direitos dos trabalhadores e noutras áreas sociais – independentemente da cor da pele”, nota.

Cabo Verde preenche-lhe grande parte da alma e do coração. Tem orgulho de ter introduzido a cerimónia do içar da bandeira do país na ‘City Hall”, a 5 de Julho (data da independência) e está quase certa de que, “desde o último censo, o número de cabo-verdianos em Newark triplicou. Temos uma relação muito apegada à terra e até mesmo os de 3.ª geração vão lá quase todos os anos. O meu neto, por exemplo, com cerca de 11 anos, já foi a Cabo Verde mais de dez vezes…”.

Considera “uma honra” fazer parte da equipa do “mayor” Ras J. Baraka, que, garante, tem a melhor das impressões da diáspora lusa. “Só um cego não se apercebe de tanta evolução em Newark… Não existe nenhum líder, nenhum político, que não aprecie uma diáspora como a nossa que investe na prosperidade de Newark e que faz com que o Bairro Leste, por exemplo, seja a Manhattan de Newark, em todos os aspectos – um local onde as pessoas vão e se sentem bem.”

Foto: NEWARK CITY HALL | Na assinatura de um protocolo com o Governo do Belize: as suas funções passam pelas relações entre a cidade de Newark e comunidades da diáspora

Quando as obrigações do ofício a levam aos eventos portugueses, “é como um bálsamo para mim. Gosto muito, sinto-me entre amigos – e adoro bacalhau, um cozido à portuguesa e por aí fora…”.

Porque “morabeza” se retribui com “morabeza”, Lígia de Freitas termina lembrando essa forma tão especial de estar na vida do povo cabo-verdiano: “É uma palavra que não existe em mais nenhum outro idioma… É a maneira de acolher as pessoas, o encanto que tem o país, da música à gastronomia, das gentes. Temos esta espécie de ‘joie de vivre’, como dizem os franceses, este saber viver bem com pouco. É um país altamente pobre, o meu, mas onde as pessoas estão sempre com um sorriso, com muita empatia. Um calor, um abraço fraternal de amizade não só entre nós, mas principalmehte a quem vem de fora.”