A Califórnia também é a Nossa Casa
Que os anos transformaram pouco a pouco
Em visão simples, cintilante ou vaga
Na outra banda do mar – Alfred Lewis (poeta açor-californiano) in Saudades (2)
Foi no século XIX que os açorianos começaram a emigrar para o estado da Califórnia. Foram as expedições baleeiras, a corrida ao ouro, e a fé na possibilidade de uma vida melhor que levou milhares de homens e mulheres das nossas ilhas a deixarem o arquipélago, procurando nova vida em terras do eldorado. Foi quase sempre uma emigração de necessidade! Vinha-se para este estado com uma saca cheia de esperança, uns para ficar, mas a maioria com o sonho de enriquecer e regressar ao aconchego das suas ilhas. Porém, o indubitável é que foram ficando e foram criando, num dos estados mais diversificados da união americana, a sua própria subcultura, a qual, como não poderia deixar de ser, é uma amálgama da nostalgia das ilhas, das suas tradições rurais e seculares, com elementos da modernidade e da multi-etnicidade californiana. Hoje, cerca de 150 anos depois de terem chegado os primeiros emigrantes açorianos, existe no seio do multiculturalismo deste estado do pacífico norte-americano, uma definitiva presença trazida pelas gentes dos Açores.
Entre 1880 e 1920 muitos açorianos (uma gran- de percentagem na flor da vida) abandonaram as suas casas, as suas famílias, as suas freguesias, e lançaram-se para além do mar, atravessaram o enorme continente ame- ricano e na “Califórnia perdida de abundâncias” como escreveu o poeta Pedro da Silveira recriaram elementos do seu “velho mundo”, das suas longínquas ilhas. Foi a lei da emigração de 1921 aqui nos Estados Unidos da América, seguida pela ainda mais discriminatória de 1924, e não qualquer melhoramento na condição de vida dos açorianos, que fez com que houvesse uma redução drástica, ao ponto da emigração do nosso arquipélago ter, praticamente estancado, entre o fim da década de 1920 e o começo da década de 1960. Saiam aqueles que tinham nascido na América e que tinham regressado com os seus apis, e mais uns escassos aventureiros, clandestinamente. Entre o começo dos anos 60, e o final da década de 70, do século vinte, milhares de açorianos deixaram de novo o seu arquipélago e reedificaram nova vida em terras da Califórnia. Entre estes dois êxodos, com os antagonismos naturais das várias gerações, muitos ultrapassados durante os últimos vinte e cinco anos, criou-se na Califórnia um riquíssimo manancial composto por uma cultura muito própria, a qual podemos cognominar de: açor-californiana.
No aspecto popular os elementos são bem visíveis. Hoje no estado da Califórnia celebram-se mais de 100 festas, a vasta maioria em louvor ao Divino Espírito Santo. Incluindo dezenas de festejos celebrando Nossa Senhora de Fátima, Santo António, Bom Jesus, Santo Cristo, São João, a Senhora dos Milagres e a Senhora da Assunção, entre outros. São festejos, ou “Festas” como se diz no linguajar popular luso-americano, que entraram no calendário social não só das comunidades de origem açoriana, mas, em vários casos, particularmente no Vale de San Joaquim e na costa central da Califórnia, no calendário das próprias comunidades californianas. Em algumas cidades, como Gustine e Pismo Beah, por exemplo, as Festas são acontecimentos importantes para as economias locais. É a subcultura como parte integrante do multiculturalismo californiano, que é, afinal, uma amalgama de culturas e línguas, de religiões e costumes, um verdadeiro mosaico humano, cultural, e tremendamente criativo.
E os festejos ao Divino Espírito Santo passaram, em várias cidades, de meros acontecimentos de gueto fechado, a eventos que aglomeram não só as várias gera- ções de luso-americanos, mas também, a presença de outros grupos étnicos, particularmente, nos cortejos onde as jovens “rainhas” e seus séquitos, muitas ao estilo de Maggie Sylvia (do romance Já Não Gosto de Chocolates de Álamo Oliveira) escolhem para seus pares, rapazes de outras etnias, desde anglo-saxónicos a hispânicos, de asiáticos a afro-americanos, refletindo uma maior abertura – trazendo e levando os festejos à sociedade que nos rodeia. Aliás, ainda no ano de 2019 (neste não aconteceu devido à pandemia), repetiu-se a proeza dos festejos do Espírito Santo terem tido honra de primeira página no jor- nal Advance-Register de Tulare, acontecendo o mesmo em múltiplas pequenas e médias cidades do Vale de San Joaquim. Destaque-se que o jornal Fresno Bee, matutino duma cidade com cerca de 550 mil habitantes, tem, nos últimos anos, publicado alguns trabalhos sobre as “festas”, realçando elementos históricos das mesmas. Já o saudoso Manuel Ferreira Duarte no seu delicioso conto, A Band Nova, referia à particularidade das festas serem parte do mundo americano: “Havia muita gente, postada nos passeios, a vê-los passar. A maioria era portuguesa. Embora se tratasse de um evento que se podia considerar rotineiro, por estar integrado entre os demais acontecimentos anuais da cidade, conhecido por as sopas, The Holy Ghost e The portagee parade, havia muita gente que via a parada pela primeira vez e muitos ficavam por ali curiosos.”
E as festas, verdadeiras celebrações da cultura popular açoriana em terras californianas são eventos que se distinguem pela conjugação que fazem entre as várias gerações. Qualquer irmandade que se preze tem, não só a sua rainha e o seu séquito, onde poucos ou nenhum dos jovens falam português mas incorporam os festejos, muito ao gosto insular, como expressou Álamo Oliveira no seu romance sobre emigração: o profano e o religioso. Aliás, é interessante notar-se que em algumas igrejas enquanto se celebra a missa há quase tantas rainhas, e membros do séquito no adro, como dentro do templo. E apesar do levantar das sobrancelhas de alguns padres, está em crescendo o número de jovens, portugueses e de outros grupos étnicos, que fazem parte dos festejos com raízes e práticas religiosas fora da igreja católica, provando o popular dito terceirense que: o espírito santo não é de igrejas.
As festas de hoje são espaços que promovem variadíssimos aspectos da cultura popular. Em muitas, e para os que ainda entendem português, lá estão as cantorias, com improvisadores das comunidades e dos Açores; as bandas de música (em algumas cidades as filarmónicas portuguesas e as bandas das escolas secundárias); os grupos de folclore; os bolos de leite; os espectáculos que vão desde música popular portuguesa, ao fado e claro, as tou- radas. São dezenas as touradas, de praça e à corda que se realizam pelo Vale de San Joaquim, e no sul da Califórnia, mais concretamente, nos subúrbios de Los Angeles, comunidades de Artesia e Chino. É importante que se saiba que ainda até há pouco existiam mais gana- deiros luso-americanos na Califórnia do que nos Açores, um fenómeno praticamente inexistente há cerca de 40 anos, e até há pouco mais de uma dúzia e meia de anos, limitado a dois ou três aventureiros. O fenómeno das touradas, num dos estados mais politicamente correctos da união americana, merecia um estudo profícuo e científico.
E para além destes acontecimentos, dos poucos nas comunidades da Califórnia que ligam as gerações desde os descendentes dos primórdios emigrantes aos últimos a emigrarem nos anos oitenta do século vinte, existem ainda uma miríade de acontecimentos que fazem parte do calendário social açor-californiano, mas estas muito mais segregadas. Entre esses eventos, destaque-se a celebração das danças e bailinhos do Carnaval à moda da ilha Terceira. Este fenómeno também merece um longo estudo e debate. Primeiro, porque embora cada vez se fale menos português nos lares luso-descendentes os bailinhos e danças têm tido nos últimos vinte anos, um crescimento significativo. Há quem acredite que seja a possível: visita da saúde. Veremos!
Entretanto, a nossa presença no multiculturalismo californiano não se limita à cultura popular, embora ela seja, obviamente, a que tenha maior visibilidade. Hoje, a língua portuguesa faz parte de dez escolas do ensino secundário na Califórnia, um número reduzido, se compararmos com outras línguas europeias e asiáticas, mas com algumas tendências para aumentar, se a comunidade o entender – porque é mais do que óbvio que terá, como sempre o aconteceu, de vir do âmago comunitário. No meio universitário são mais de duas dúzias de universidades e “community colleges” que oferecem cursos de língua e cultura portuguesas, alguns com a particularidade de focarem a especificidade da cultura açoriana.
Apesar de não ser com a regularidade desejada, ainda existem, um pouco por toda a Califórnia, espaços culturais onde se destaca a música erudita, a literatura, as artes plásticas, a história, etc. Aqui, e permitam-me a falta de modéstia, faz falta para o estudo contínuo e a ligação Açores/Califórnia, assim como fórum de debate entre os intelectuais da diáspora açoriana no continente norte-americano, a presença do simpósio Filamentos da Herança Atlântica que durante 12 anos teve palco na cidade irmã de Angra do Heroísmo, Tulare. Resta-nos o trabalho de algumas instituições e departamentos de português de algumas universidades e community colleges, particularmente o trabalho colossal feito pelo congresso da Luso-American Education Foundation e a criação recente do Portuguese Beyond Borders Institute (PBBI) da universidade estadual da Califórnia em Fresno, com o seu Azorean Diáspora Project, entre tantos outros projectos.
No século XIX os açorianos começaram a pisar o solo da Califórnia. Hoje, em pleno século XXI somos parte integrante do multiculturalismo deste enorme estado. A nossa presença está, com cada dia que passa, muito mais plausível no denominado “mainstream”, muito mais implantada, porque estamos a aprender, tal como escreveu algures Ralph Waldo Emerson, que: “a cultura é algo muito diferente do verniz”.