Na palavra Saudade – a língua viva*

🖋 Por DINIZ BORGES

Se é certo, como foi dito algures, que as antologias são praticamente tão antigas quanto a poe- sia, nos Açores contamos com algumas das mais completas antologias que marcaram as nossas vivências poéticas no meio do Atlântico Norte. Pedro da Silveira trouxe-nos a Antologia de Poesia Açoriana do Século XVII a 1975, um trabalho importantíssimo com um prefácio que é, nas suas 42 páginas, um documento preciosíssimo de história e teoria literária. E pelas mãos de Ruy Galvão de Carvalho tive- mos A Antologia Poética dos Açores (I e II volumes). Mais tarde, Eduardo Bettencourt Pinto trouxe-nos a antologia contemporânea Os Nove Rumores do Mar.

No meu entender, como organizador da antologia Nem Sempre a Saudade Chora, havia a necessidade de se reunir a poesia açoriana com a temática da emigração. É que, como creio que o próprio leitor poderá verificar, nas páginas desta antologia, agora com nova edição, que inclui outras vozes, e publicada há dias pela Letras Lavadas, a emigração, presente quase desde que os primeiros povoadores chegaram aos Açores, tem contribuído imenso para a nossa literatura açoriana e portuguesa. Os criadores açorianos, direta ou indiretamente, têm focado o fenómeno da emigração para as Américas.

Ao longo dos séculos, o nosso arquipélago tem sido porto de partidas e a emigração, principalmente – para o Brasil, os Estados Unidos, o Canadá e as Bermudas – marcou não só os que das ilhas saíram para terras do Novo Mundo, e lá plantaram raízes, semearam os nossos costumes e as nossas tradições, comungaram outras culturas, dissemelhares e estranhas, transformando-os em outros seres humanos, em açorianos diferentes, em açorianos com hífens (açor-americanos, açor-canadianos, etc.) é verdade, mas continuam a ser açorianos. Mas, como não podia deixar de ser, a emigração também marcou os que nas ilhas ficaram. O momento da partida, que está solenizado no famoso e enigmático quadro de Domingos Rebelo, também tem sido cadenciado e suspirado pelas vozes poéticas mais conhecidas dos Açores, como podemos verificar em Almas Cativas de Roberto de Mesquita.

Com a partida ficaram alteradas para sempre muitas vidas. Não foram apenas os que um dia deixaram a terra à procura de outras oportunidades, mas também aqueles que nas ilhas ficaram sentindo e chorando uma ausência, que quase sempre era definitiva. Aqueles para quem os seus mundos, mesmo na sua ambiência rotineira, tinham sido adulterados. Entre outras vozes, essa ausência é marcante no poema Carta para Longe de Armando Cortês Rodrigues.

Sobre as partidas, e a modificação significativa nas vidas de quem ficou, ainda nos tempos primor- diais da nossa emigração, principalmente para os Estados Unidos e mais tarde para o Canadá, debruçaram-se alguns dos nomes mais conhecidos da poesia açoriana do século vinte. As cartas, em que o emigrante contava as suas glórias e os seus dilemas, assim como o espanto de quem as recebia, e as lamentações e as ambições de quem as respondia, são pedaços preciosos da nossa criação poética. Entre outras recorde-se algumas das mais expressivas em que os dilemas da emigração, nos seus múltiplos níveis e inquietações, são explorados – desde a estranheza das novas terras, seus usos e costumes, às encomendas que enchiam a casa dos que na ilha ficavam, até à inquietude de um êxodo imigratório poder modificar, significativamente, as vivências no nosso arquipélago: a Décima da Genuína Baganha de Vitorino Nemésio, a Carta de João Valente de Álamo Oliveira e a Carta de Joe Simas de Marcolino Candeias, entre outras. É que estas cartas, para além de serem obras de arte poética, são ainda documentos essenciais para se compreender a história social de uma época e de um tempo nas vidas dos açorianos dentro e fora dos Açores, quando as cartas de e para a América eram parte das nossas vivências.

Neste corpus literário dos Açores também são notáveis os poemas que deram expressão às visitas do emigrante, ora visto com algum folclorismo, ora visto como um membro da família que se ausentara por muito tempo e daí a sua diferença. Nesta antologia estão poemas dessas via- gens de retorno, com perspetivas distintas: Alfred Lewis, na sua Carta; Padre Mateus das Neves no Amaricano e João Teixeira de Medeiros em Regresso Tardio, entre outros.

A viagem da poesia açoriana pela experiência da emigração também inclui alguns poetas que, vivendo no estrangeiro, contaram as suas experiências, quer no aspeto nostálgico de viver a ilha à distância, quer na assimilação às novas terras. Essa mistura, que enriqueceu a nossa literatura, é também sentida nos cânticos de poetas residentes no território nacional, mas que, ao participarem em congressos e colóquios, sentiram e enalteceram a nossa vivência entre dois mundos, como Vasco Pereira da Costa, cuja obra inclui o livro My Californian Friends, o qual poderia ter sido reproduzido na íntegra nesta antologia, por ser uma obra única na poesia dos Açores no que concerne à vertente da emigração.

Em jeito de conclusão, poder-se-á dizer que, se os Açores não seriam os mesmos Açores sem as experiências e as vivências da nossa emigração para as Américas, sem a componente além-arquipélago da nossa diáspora. Também a literatura açoriana não seria, definitivamente, a mesma literatura sem a marca pungente do nosso mundo de partidas e chegadas. Esta antologia tenta ser um hino à nossa emigração, aos que partiram e aos que ficaram. É que todos, como se disse, viram as suas vidas alteradas, para sempre.

Fechado, como parece estar, o ciclo da emigração açoriana (pelo menos em números significativos) para as terras do Novo Mundo, agora que, como escreveu o poeta Pedro da Silveira, já o mar não é caminho de emigrantes, é importante refletir-se nessa trajetória que fizemos, como povo partido e repartido pelas Américas, e nas suas repercussões para a história e para as letras da nossa, hoje, Região Autónoma dos Açores. E que na diáspora, as novas gerações nunca se esqueçam que também fomos emigrantes, que também fomos estrangeiros.

Espero, de uma forma despretensiosa, mas sentida, que esta antologia sirva para essa reflexão e, simultaneamente, como homenagem às vozes dos Açores, as quais dentro e fora do arquipélago, souberam cantar um período na nossa história em que, como escreveu Almeida Firmino, lá estava: sem- pre vazio o teu lugar à mesa e a tua voz cada vez mais distante.

* de um poema de Vasco Pereira da Costa in My Californian Friends; Texto adaptado da introdução à antologia Nem Sempre a Saudade Chora recentemente publicada em segunda edição pelas Letras Lavadas em Ponta Delgada com o apoio da Direção Regional das Comunidades—uma homenagem à nossa emigração.