O DESASTRE AMERICANO: Não podemos viver num caos permanente

🖋 Por DINIZ BORGES

Os Estados Unidos vivem dias conturbados. As últimas semanas foram marcadas por uma série de eventos, extremamente preocupantes para a mais velha democracia da era moderna, e para todos quantos acreditam na importância de uma América coesa, consciente dos seus êxitos e dos seus desafios, e em diálogo constante com os seus parceiros em várias partes do mundo. Essa América de que todos temos saudades: trabalhando para um mundo que seja mais pacifico e mais justo. Apesar de ser o país paradoxal, que todos conhecemos, mas até há bem pouco tempo, ainda era um baluarte que inspirava optimismo e esperança. Hoje, a três semanas das eleições presidências vive-se uma penélope de ocorrências que nos fazem questionar, por mais quanto tempo as instituições americanas sobreviverão o caos desta administração e o ódio que a mesma tem semeado através do país. Será que este desastre americano está perto do fim?

A pandemia global, que nos Estados Unidos se alastra sem um plano nacional, com cada estado a ditar as suas regras e a sua sentença, continua a infectar e matar americanos todos os dias, ao ponto da comunicação social (com algumas excepções) apenas falar dos números quando atingem um patamar. Já passou a ser rotina. Em poucos dias será a notícia de 8 milhões de cidadãos infectados e 220 mil mortes. Nos últimos sete dias cerca de 45 mil pessoas têm sido infectadas, diariamente, nos Estados Unidos, ou seja, o dobro do fim do mês de março quando o país parou. Em cada 24 horas morrem perto de mil pessoas. As mais altas instâncias governativas e militares foram infectadas, incluindo, como se sabe o presidente Donald Trump e 34 dos seus mais próximos colaboradores. Somos 4% da população e temos 20% da mortalidade mundial provocada pelo coronavírus.

E a resposta que se vive no quotidiano americano é mais um sinal, claro e inequívoco, de uma sociedade distraída pelos tweets (120 no espaço de 24 horas após receber alta médica e voltar à Casa Branca) do Presidente e transportada para os confins da polarização pela retórica perigosa de um déspota que a democracia americana, através do colégio eleitoral, elegeu há quatro anos. Uma percentagem elevada de cidadãos americanos recusa utilizar qualquer tipo de máscara, o distanciamento social é quase inexistente em muitos estados, ignoram-se (tal como o Presidente fez) as recomendações básicas das entidades da saúde pública e olha-se para a pandemia como algo que, tal como Trump admitiu pouco depois de sair do hospital: uma doença sem perigo.

Só na América de Donald Trump é que uma pandemia global, um vírus perigoso e desconhecido, poderia ser interpretado como um elemento divisório. Num momento em que os Estados Unidos precisavam de se unir, fazer um verdadeiro esforço colectivo, e combater um inimigo silencioso, o Presidente preferiu intrujar o povo americano, politizando e colocando em perigo a vida de muitos americanos, incluindo os seus assessores e membros da sua equipa de segurança. É que mesmo depois de saber que estava infectado, Trump decidiu ir a uma festa de angariação de fundos para a sua campanha, desrespeitando até quem lhe dá milhares e milhares de dólares. É que conseguiu cerca de cinco milhões de dólares no dito acontecimento.

Tal como soubemos, através do novo livro do jornalista Bob Woodward, a administração tinha sido informada nos fins de janeiro sobre a gravidade do covid-19, o actual inquilino da Casa Branca determinou manter silêncio para não alarmar os mercados financeiros. É mais do que óbvio que um aviso 30 dias antes do alastramento teria poupado vidas, e qualquer política nacional, arquitectada com os governadores de cada estado teria poupado o caos lançado no país. Donald Trump preferiu, ainda outra vez, salvar a sua imagem narcisista em detrimento do bem-estar nacional. Normalmente as crises unem as pessoas e os países. Com a liderança de Donald Trump, a pandemia global tem dividido os americanos e trazido à flor da pele algumas das sensações mais perniciosas que a humanidade, infelizmente, ainda é capaz de sentir e apregoar.

As últimas semanas têm sido particularmente marcantes e mostram-nos uma América diferente, que poderá não ter cura, mesmo após a saída de Donald Trump—particularmente se não acontecer em novembro. No recente debate com Joe Biden, o presidente teve ainda outra oportunidade de se distanciar dos movimentos xenófobos, racistas e das supremacias brancas que tentam destruir a verdadeira beleza americana: a sua multiculturalidade – uma manta tecida com todas as raças, cores, credos e etnias. O moderador da Fox News foi altamente gentil, e deu-lhe essa oportunidade. Houve até quem pensasse que utilizaria a oportunidade para fazer esse distanciamento, mas como nos disse algures a poeta afro-americana Maya Angelou: quando alguém, à primeira vista, se mostra como é, acredita. Ninguém deveria ter ficado surpreendido com o comportamento de Donald Trump no debate. Foi, o que já se esperava. Foi igual a si próprio. E o ódio que semeou, recusando qualquer distanciamento, incluindo dos grupos paramilitares, já teve o seu efeito. No estado de Michigan, cuja governadora tem sido sistematicamente asseverada por Donald Trump, foi desmantelado pelo FBI um plano de milícias paramilitares que tinha como objetivo raptar e assassinar Gretchen Whitmer.

Aliás, Donald Trump conseguiu, em apenas quatro anos, desestabilizar a idiossincrasia americana e trazer das margens para o centro os grupos da ultradireita. O pandemónio semeado pelo seu narcisismo fez com que o debate vice-presidencial, entre Kamala Harris e Mike Pence, ficasse rotulado pela comunicação social como “um debate civilizado”. Nem que as mentiras constantes de Pence, o seu persistente desrespeito pela moderadora, e as suas inúmeras tentativas de interromper a sua opositora de forma condescendente – que teriam tido sucesso se Harris não tivesse demonstrado firmeza – fossem normalidades de um: debate civilizado. O circo imposto por Trump, no primeiro fórum, baixou a um nível nunca visto o barómetro dos debates americanos, ao ponto de a estrela no debate dos dois candidatos à vice-presidência ser uma mosca que poisou, durante uma grande parte do evento, na cabeça Pence. Até as moscas têm mau gosto!

Caminhamos, nos Estados Unidos, a passos largos para 3 de novembro. Mais de 15 milhões de americanos já votaram. Outras dezenas de milhares fá-lo-ão nas próximas duas semanas, antes do dia do ato eleitoral. O mundo espera com ansiedade esta escolha. A campanha de Biden promove a ideia de que esta é uma opção que determinará a reconquista da alma americana. Na realidade estamos perante uma eleição para salvar a América, para preservar a democracia. Não sejamos ingénuos, a alma americana está enodoada e só uma reconciliação nacional resgatá-la-á dos estragos feitos por Donald Trump.

Todos os países, todos os povos, têm as suas máculas, os seus momentos de glória e os seus momentos sombrios. Em democracia as eleições são espaços únicos de se corrigir erros e de se construir o futuro. O autor alemão do século XVIII, Johann Gottfried Seume, escreveu: a sorte para os déspotas é que metade das pessoas não pensam, e os outros não sentem. Nesta eleição, é urgente que o eleitorado americano pense e sinta.